Lei Maria da Penha: Uma Celebração Vazia Diante de Milhares de Mortes

O mês das mulheres escancara a persistente tragédia da desigualdade, assinalada por altas persistentes de feminicídios. A Lei Maria da Penha (LMP), embora reputada como um avanço, paradoxalmente concorre para o problema, em virtude de seus entraves administrativos (rígida hierarquia, excesso de programatismo, falha crucial na análise de vulnerabilidade). A morosidade processual e o consequente descrédito institucional penalizam as mulheres que anseiam por proteção.
Os formalismos excessivos e a centralização de poder no Judiciário imobilizam a efetivação da legislação. O Art. 12, III, que impõe o encaminhamento de medidas protetivas em até 48 horas, frequentemente é retardado pela sobrecarga do sistema. Mesmo o Art. 19, § 1º, que faculta a concessão de medidas imediatas, esbarra em um labirinto burocrático complexo entre tribunais, delegacias e equipes técnicas, expondo as vítimas a perigos desnecessários.

O estatuto jurídico peca por ser excessivamente programático, oferecendo diretrizes genéricas que carecem de especificidade prática (Art. 8º – integração entre entes federativos sem mecanismos claros; Art. 12-A – criação de delegacias especializadas ainda pendente em inúmeros municípios; Art. 9º – assistência integrada entre saúde, segurança e assistência social sem pormenorização de como ocorrerá). Essa carência de clareza e estrutura, medida escolhida pelo Estado para combater a violência de gênero, redundou em uma operacionalização desigual e, amiúde, inócua da lei.

Um dos pontos mais críticos reside na desconexão do conhecimento médico-científico na avaliação de perigo. O formulário de risco, aplicado pela Polícia Civil, não integra as equipes multidisciplinares, que detêm maior expertise para perscrutar os casos. A atuação dessas equipes restringe-se a um papel consultivo (Art. 30), sem autonomia para decisões urgentes, mesmo em situações de ameaça iminente. A priorização do formalismo burocrático sobre a proteção humanizada conduz a análises incompletas e decisões tardias. A escassez de recursos e a sobrecarga do sistema agravam essa situação, um quadro intensificado pela própria LMP ao vincular a criação dessas equipes à de juizados especializados – medida contraproducente, dada a exaustiva carga do Judiciário, cuja função precípua não é manter tais equipes de avaliação, mas sim fornecer análises jurídicas e decisões. Essa vinculação inadequada deixa as mulheres desprotegidas.

O poder público e outros atores relevantes parecem ignorar essas falhas estruturais. As efemérides alusivas ao mês da mulher, e mais tarde ao aniversário da LMP, tornam-se vazias diante da realidade: quase 12 mil feminicídios em 10 anos (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública). Há uma resistência em criticar o diploma legal, fortemente associado à figura emblemática de Maria da Penha, o que politiza ainda mais o debate. Em vez de celebrações com dados animadores ou respostas efetivas, o destaque recai sobre eventos de cunho político, enquanto a triste realidade de incontáveis mortes evitáveis persiste, um consenso entre especialistas.

JOÃO PAULO BRAGA CAVALCANTE
CIENTISTA SOCIAL PELA UECE E DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA UFC

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