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Análise do g1 mostra relação da trilha sonora com cenas do longa. Faixas exploram censura, metáforas e mensagens indiretas. Filme concorre a três Oscars, neste domingo (2). A música “É preciso dar um jeito, meu amigo” foi lançada durante a ditadura militar brasileira, em 1971. É o mesmo ano do assassinato do ex-deputado federal Rubens Paiva, tema central de “Ainda estou aqui”, que concorre a três Oscars – Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz (Fernanda Torres).
Agora, 54 anos depois de ser gravada, a faixa cantada por Erasmo Carlos é a principal trilha do longa, original Globoplay dirigido por Walter Salles.
As principais músicas de ‘Ainda Estou Aqui’ e o que elas dizem do filme
Além de estar nos créditos do filme, “É preciso dar um jeito, meu amigo” é exibida em uma de suas cenas iniciais. Nela, vemos a família Paiva reunida, feliz, sem imaginar os horrores que lhes atingiria em breve.
“Montei a cena sem nada. Mas como aquela sempre foi a minha música favorita do Erasmo e é de 1971, tentei usar ali”, diz Affonso Gonçalves, editor que trabalhou na trilha sonora do filme ao lado do diretor e dos roteiristas Heitor Lorega e Murilo Hauser.
Embora seja cantada só por Erasmo, “É preciso dar um jeito, meu amigo” foi composta em parceria com Roberto Carlos. O capixaba escreveu a letra após visitar Caetano Veloso e Gilberto Gil em Londres, na Inglaterra, quando os tropicalistas estavam exilados devido à ditadura. Experiência que também o inspirou a compor “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”.
Mesmo sob um tom discreto de crítica ao regime militar, nenhuma das letras foi capaz de desassociar Roberto da imagem que ele tinha de artista “isentão”. Em contraste a músicos da contracultura dos anos 1970, ele nunca foi de se manifestar abertamente sobre política. E chegou a ser condecorado pelos militares — o que o tornou alvo de repúdio de setores da esquerda.
Essa associação entre Roberto e uma postura passiva é sutilmente captada por “Ainda estou aqui”.
Cena de ‘Ainda estou aqui’, original Globoplay de Walter Salles
Reprodução
Tudo certo como dois e dois são cinco
A voz de Roberto aparece no longa em dois momentos — ambos com rádio. Em um deles, a faxineira Zezé (Pri Helena) passa roupas da família Paiva enquanto ouve “As curvas da estrada de Santos”. A canção aparece de fundo, quase imperceptível.
Já na outra cena, Eunice (Fernanda Torres) liga o rádio para interromper uma discussão com sua filha Vera (Valentina Herszage). Do aparelho, surgem os versos de “Como dois e dois”. O momento é uma referência implícita a ideia de cantor apolítico, tão atrelada a Roberto.
Usada como “cala a boca”, a faixa é colocada pela personagem em volume alto para a garota desistir de perguntar sobre os horrores da ditadura.
Filem Ainda Estou aqui estreia nesta quinta-feira
Divulgação
Além disso, a letra da música soa como uma extensão da contradição da protagonista, que tenta fingir que tudo está sob controle enquanto sofre angustiada pelo desaparecimento de seu marido, Rubens. “Meu amor/ tudo em volta está deserto/ tudo certo/ tudo certo como/ dois e dois são cinco”. Cantada pelo capixaba, a faixa foi composta por Caetano Veloso.
Affonso conta que não foi ele quem escolheu usá-la na cena, mas sim os roteiristas: “A música já estava no roteiro, então, com certeza, tem um pouco dessa questão, mas não foi uma coisa discutida na sala de montagem”.
Quanto ao uso de “As curvas da estrada de Santos”, o editor afirma que a escolha tem mais a ver com o sucesso do músico nas rádios da época. “A gente sempre imaginou que Zezé ouvia rádio durante o trabalho. Então, ela escutava MPB, Roberto Carlos, por aí…”
Fermanda Torres e o elenco jovem do filme ‘Ainda estou aqui’
Divulgação/Sony Classic Pictures
Comigo vai tudo azul, contigo vai tudo em paz
Além de Roberto e Erasmo, “Ainda estou aqui” reúne gigantes da MPB como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé e Juca Chaves. Nomes que tiveram importante papel na formação do tropicalismo, movimento de contracultura que florescia justamente na época em que o filme se passa.
A contracultura está até mesmo em cenas que dispensam trilha, como quando um militar (papel de Luiz Bertazzo) vasculha a casa dos Paiva e encontra dois álbuns que chamam sua atenção: um é do Caetano, e o outro é da banda inglesa King Crimson. O momento foi um improviso do ator para enfatizar que os militares estavam de olho até no íntimo da família.
O cenário também se joga nessa ideia. A parede do quarto das filhas tem pôsteres dos Beatles, de Caetano, Gil e Gal.
Fernanda Torres em cena de ‘Ainda estou aqui’
Divulgação
Para dar fôlego ao ar de rebeldia juvenil de Vera, ouvimos “Jimmy, Renda-se”, de Tom Zé e Waldez. Um samba rock, a música surfa no tropicalismo e cutuca o “viralatismo” brasileiro, com uma letra engraçada e de instrumental psicodélico.
O ar tropicalista também aparece em “Take Me Back to Piaui”, de Juca Chaves, e “Baby”, que é de Caetano, mas se eternizou na voz de Gal.
“Ainda estou aqui” tem ainda uma trilha original de músicas instrumentais, compostas por Warren Ellis, membro da banda Nick Cave and the Bad Seeds.