As tendências culturais nunca surgem ao acaso. Ao longo da história, discursos sobre o papel da mulher na sociedade foram moldados conforme as necessidades econômicas e políticas de cada época. Na Suécia, país historicamente reconhecido por incentivar a participação feminina no mercado de trabalho, o governo fomentou a ascensão da mulher como força produtiva para suprir a falta de mão de obra masculina após as Grandes Guerras. Agora, diante de uma crise demográfica, cresce um novo discurso que sugere um caminho inverso: o retorno ao lar como um desejo genuíno e uma escolha legítima.
O movimento soft girl, que começou como uma simples estética ultrafeminina, cresceu e passou a carregar consigo uma nova narrativa: afastar-se da cultura da “girl boss”, que durante anos incentivou mulheres a se dedicarem à carreira e ao sucesso profissional. No entanto, o que parece ser apenas uma nova forma de expressão individual está longe de ser um fenômeno isolado.
A adesão ao soft girl na Suécia tornou-se um dos principais temas de debate no país, sendo discutido em jornais de grande circulação, eventos políticos e na televisão pública. Gudrun Schyman, cofundadora do partido feminista Feministiskt Initiativ, alerta que essa onda pode representar um retrocesso para a igualdade de gênero, já que reforça a ideia de que a mulher pode (ou deve) abrir mão da sua independência financeira em prol da estabilidade doméstica. Schyman também ressalta que muitas jovens suecas não carregam a memória da luta histórica pelos seus direitos, como acesso ao mercado de trabalho e igualdade salarial, tornando-as vulneráveis a discursos que parecem libertadores, mas que podem representar um retorno à dependência econômica.
O problema se torna ainda mais evidente quando essa tendência é importada para realidades completamente distintas, como a do Brasil. Em um país onde a maioria das famílias depende de dois provedores para garantir o básico e onde mulheres ainda enfrentam obstáculos para conquistar estabilidade financeira, o discurso de que sair do mercado de trabalho é uma “escolha viável” ignora a realidade concreta da sociedade. O impacto disso nas adolescentes brasileiras, que consomem e absorvem essas tendências sem o contexto completo, é preocupante. Enquanto na Suécia há um sistema de proteção social estruturado, no Brasil não há qualquer rede de segurança para sustentar essa suposta liberdade de escolha.
A grande questão não é apenas o impacto imediato do movimento soft girl, mas o que ele representa para a próxima geração de mulheres. Adolescentes que crescem consumindo um ideal de feminilidade que as afasta da independência profissional e financeira correm o risco de serem condicionadas a um modelo de vida que não será acessível para todas. Essa é uma geração que, em poucos anos, precisará ocupar espaços de liderança, garantir sua própria segurança econômica e construir seu futuro. Se forem ensinadas a desejar apenas a estabilidade emocional de um relacionamento como forma de realização, estarão ainda mais vulneráveis a situações de dependência e submissão.
A globalização de discursos culturais pode ser perigosa quando ignora as realidades locais e os interesses por trás dessas narrativas. Não há coincidências nesses movimentos. Da mesma forma que foi conveniente para a Suécia incentivar mulheres a trabalharem quando isso era necessário para a economia, agora há uma nova narrativa sendo plantada para garantir que a próxima geração de mulheres cumpra outro papel: aumentar os índices populacionais. A questão é: até que ponto essa escolha é realmente livre?
A liberdade só existe quando há múltiplas opções reais e viáveis. E essa liberdade exige acesso à educação, oportunidades iguais no mercado de trabalho, políticas públicas de suporte e um ambiente econômico que permita que cada mulher decida seu futuro sem que essa decisão signifique abrir mão da sua autonomia. Antes de importarmos discursos sem análise crítica, é essencial perguntar: essa tendência amplia ou reduz as possibilidades das mulheres? E quem realmente se beneficia quando meninas aprendem que seu maior sonho pode ser depender financeiramente de outra pessoa?
BEATRIZ SIDRIM
JURISTA E
CEO DA DESTINOS
OBJETIVOS
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