Aos 81 anos, Lia de Itamaracá celebra trajetória em mostra na Caixa Cultural Fortaleza

Aos 81 anos, Lia de Itamaracá segue girando com a mesma determinação de quando começou, mas agora levando consigo o reconhecimento de gerações. Em entrevista ao jornal O Estado CE, a artista fala com franqueza e emoção sobre sua infância em Itamaracá, o começo difícil, a descoberta da arte como caminho e a luta incansável por manter viva a ciranda — manifestação cultural que ela transformou em símbolo nacional de resistência, pertencimento e democracia.

Sua trajetória está no centro da exposição “Lia de Itamaracá – Cirandar é Resistir”, em cartaz na Caixa Cultural Fortaleza até 11 de maio. A mostra reúne fotos, objetos, vídeos e memórias que contam a história dessa mulher que saiu das areias da Praia de Jaguaribe para se tornar Patrimônio Vivo da Cultura Pernambucana e referência da cultura popular brasileira no mundo.

Mais do que celebrar uma carreira, a exposição propõe ao público um mergulho nas raízes e na força de uma arte feita pelo povo e para o povo. “Manter de pé uma manifestação popular como a ciranda, com suas raízes, essa música linda, a dança… não foi fácil”, diz Lia, em um dos trechos da conversa. E é justamente esse fio de resistência, de afeto e ancestralidade que costura sua história. Contada agora, também, em forma de arte. Confira a entrevista.

O ESTADO – Você é uma das maiores referências da cultura popular brasileira. Como foi sua infância em Itamaracá e o seu primeiro contato com a ciranda?
LIA DE ITAMARACÁ – Olhe, minha infância não foi fácil. Apesar de brincar, correr, dançar, eu precisei ajudar minha mãe enquanto ela trabalhava. Não fiquei lá na casa dos patrões dela tomando Danoninho, não. Muitas vezes eu limpava o chão, lavava aquele chão de tijolo cru. Todos nós fomos criados ali naquela casa enquanto minha mãe arrumava, lavava e cozinhava. A ciranda não apareceu na minha vida na infância, só um pouco mais tarde. Mas, ainda assim eu já queria ser cantora. Eu achava lindo quando via aquelas cantoras na televisão e ouvia no rádio. Minha vida toda eu sonhava em ser artista.

O ESTADO – Você começou sua trajetória artística ainda muito jovem. Em que momento percebeu que a ciranda era mais do que uma tradição, mas o seu caminho de vida?*
LIA DE ITAMARACÁ – Eu percebi isso quando já trabalhava no Bar Sargaço como cozinheira. O bar ficava pertinho da minha casa, na Praia de Jaguaribe, lá em Itamaracá. Foi ali mesmo que eu comecei a cantar como uma forma de trabalho. Eu já começava a ser conhecida porque fazia rodas de ciranda todos sábados. Dona Creuza, a dona do restaurante, recebia os turistas e já avisava que ia ter roda de ciranda com Lia. As pessoas ficavam esperando, e assim eu ficava pra lá e pra cá, cozinhando, recebendo as pessoas junto com ela e depois cantava. Uma roda de ciranda se abria e a festa começava. Isso virou costume, era todo final de semana, o bar ficava cheio, deixei a cozinha do bar e passei a atração principal. Foi ali mesmo que aconteceu o primeiro Festival de Ciranda de Itamaracá. Foi lindo.

O ESTADO – Ao longo da sua carreira, o que mudou na forma como a ciranda é recebida pelo público? Você sente que houve um reconhecimento maior nos últimos anos?
LIA DE ITAMARACÁ – Um reconhecimento porque eu lutei muito. Passei a falar da ciranda e dessa cultura por onde fui, seja no exterior ou aqui no Brasil. Faço isso até hoje. Antes de mim, muitas mestras e mestres de ciranda passaram, como Dona Duda e Baracho, mas naquela época não tinham olhado para a ciranda como olham hoje. Mudou e mudou muito. Eu sigo aqui preservando e mantendo a tradição viva, e vou fazer isso até quando eu puder cantar. A ciranda é uma dança do povo, todo mundo participa. Viva a democracia.

O ESTADO – Você sempre levou a cultura de Pernambuco e do Nordeste para o mundo com orgulho. Como é representar tantas gerações, territórios e memórias por meio da sua arte?
LIA DE ITAMARACÁ – Eu não imaginava que chegaria até aqui. Eu tinha o sonho de ser cantora, de ser artista e de ser reconhecida. Isso aconteceu. Meu papel é representar não só quem faz ciranda, mas todos os artistas da cultura popular nordestina, que merecem mais reconhecimento. Eu estou na luta por cada um que faz cultura, seja do coco de roda, da ciranda, do maracatu, seja o povo preto, as professoras, os artistas de todas as gerações. Meu papel é representar a cultura, e tenho muito orgulho de ser ouvida e ajudar tanta gente a resistir.

O ESTADO – Quais foram os maiores desafios que enfrentou para se manter fiel às suas raízes e, ao mesmo tempo, ganhar espaço no cenário artístico nacional?*
LIA DE ITAMARACÁ – No meu aniversário de 75 anos, em 2019, adotamos a palavra resistência. Eu sempre fui resistente. Resisti com sorriso no rosto e simplicidade, e assim fui abrindo portas. Não foi fácil. Já fui enganada quando gravei meu primeiro disco lá em 1977, já fui esquecida pelos empresários da música, pelos governos e por prefeitos da minha cidade. Mas, a preta aqui não desiste. Não pode amolecer não. Tem que ter pulso firme e coragem. Aqui estou eu pra contar história.

O ESTADO – Sua trajetória está sendo celebrada na exposição em cartaz na Caixa Cultural Fortaleza. Como foi para você ver sua história contada em forma de arte, com fotos, objetos e memórias?
LIA DE ITAMARACÁ – Eu acho lindo que o povo me conheça e saiba de onde vim e o que faço, mas ainda mais quando as crianças vão conhecer as exposições que falam sobre minha trajetória. Essa geração precisa conhecer sua história e sua cultura. Me emociono toda vez que isso acontece, porque vejo tudo aquilo ser contado, olho pra trás e vejo que está valendo a pena deixar meu legado pra todas as gerações que estão chegando.

O ESTADO – A exposição reforça a importância da mulher, da ancestralidade e da cultura popular. Que mensagem você gostaria que os visitantes levassem consigo ao sair de lá?
LIA DE ITAMARACÁ – Mensagem de respeito a quem trabalha pra cultura existir. Mensagem de resistência. Nada disso foi fácil. Manter de pé uma manifestação popular como a ciranda, suas raízes, essa música linda, a dança… não foi fácil.

O ESTADO – Você é uma inspiração para tantas mulheres, artistas e jovens. Que conselho daria para quem deseja seguir um caminho na cultura popular com autenticidade e resistência?
LIA DE ITAMARACÁ – Não desista. Faça o que tiver de fazer para abrir portas e mostrar seu trabalho. Alguma hora alguém irá reconhecer e valorizar. Foi assim comigo.

O ESTADO – Depois de tantos palcos, encontros e celebrações, qual momento da sua carreira mais te emociona até hoje?
LIA DE ITAMARACÁ – São muitos, não dá pra apontar um assim, mas receber o título de Patrimônio Vivo da Cultura Pernambucana foi emocionante, ver o reconhecimento acontecer em vida. Quero que tudo seja em vida.

O ESTADO – E por fim, o que ainda pulsa no seu coração como sonho? O que Lia de Itamaracá ainda quer cantar, viver e realizar?
LIA DE ITAMARACÁ – Eu não parei de sonhar. Estou mais vida do que nunca, minha gente. Tem novidades chegando! Estou passando uma temporada em São Paulo para gravar meu próximo disco, uma parceria com minha amiga maravilhosa, a cantora Daúde, pelo Selo Sesc. O álbum traz novas composições de cirandas e maracatus, integrando elementos tradicionais com arranjos modernos. Vai ficar demais!

Por: Felipe Palhano

O post Aos 81 anos, Lia de Itamaracá celebra trajetória em mostra na Caixa Cultural Fortaleza apareceu primeiro em O Estado CE.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.