Trauma causado por conflito armado pode deixar marcas em sistema ligado ao DNA

O trauma causado por conflitos armados é capaz de deixar marcas durante mais de uma geração no sistema que ativa e desativa a “leitura” do DNA humano, sugere um estudo feito com famílias de refugiados da Síria. As mudanças bioquímicas no genoma foram identificadas tanto em pessoas que testemunharam a guerra quanto em filhos que elas geraram só depois de fugir de seu país.

As alterações, analisadas por pesquisadores dos Estados Unidos e da Jordânia, são relativamente sutis, e seu efeito sobre o organismo não está claro. Ainda assim, trata-se de mais um exemplo de que mudanças relevantes no ambiente dos pais ou mesmo dos avós de uma pessoa podem ser transmitidas de uma geração para outra, mesmo quando não ocorrem alterações no DNA propriamente dito.

O artigo que relata as descobertas saiu recentemente na revista especializada Scientific Reports e foi coordenado por Connie Mulligan, pesquisadora do Departamento de Antropologia e do Instituto de Genética da Universidade da Flórida em Gainesville. Mulligan e seus colegas americanos colaboraram com um grupo da Universidade Hashemita, na Jordânia, já que as famílias de refugiados sírios que participaram do estudo estão radicadas em território jordaniano.

Antes dessa publicação, uma série de estudos anteriores em animais e seres humanos já havia apontado efeitos semelhantes, causados por fatores como estresse crônico ou falta de alimentação adequada. O caso mais famoso na nossa espécie é o do chamado “Hongerwinter” (“inverno da fome”, em holandês) de 1944-1945.

Essa situação afetou milhões de moradores da Holanda durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Exército nazista restringiu a chegada de alimentos ao país pouco antes de ser derrotado pelos Aliados. Os bebês nascidos de mães que estavam grávidas durante o “Hongerwinter” tinham mais chances de desenvolver uma série de problemas de saúde, como diabetes, doenças cardiovasculares e até mesmo esquizofrenia.

Diversos estudos indicaram que situações como essa podem ser causadas pelas chamadas alterações epigenéticas. Nelas, pequenas mudanças na maneira como trechos do DNA são “lidos” pelas células acabam modificando o funcionamento do organismo como um todo, ligando ou desligando certos mecanismos celulares. Modificações epigenéticas também estão associadas aos processos de envelhecimento, podendo fazer com que uma pessoa tenha uma “idade biológica” mais avançada que a sua idade cronológica real.

Mulligan e seus colegas analisaram um dos principais tipos de marcações epigenéticas no DNA de 48 famílias de origem síria (no total, 131 pessoas). Os refugiados chegaram à Jordânia em duas levas: primeiro, nos anos 1980, após um confronto entre o governo e rebeldes que pode ter causado a morte de até 40 mil pessoas na cidade de Hama; e, mais tarde, na guerra civil síria iniciada em 2011.

Um dos grupos continha uma mulher que estava grávida quando fugiu para a Jordânia nos anos 1980 e hoje é avó, e ambos tiveram a participação de mulheres que viajaram para o país durante os conflitos e geraram seus filhos após chegar lá. As mudanças epigenéticas nesses grupos foram comparadas com as de famílias sírias que se mudaram para a Jordânia em tempos de paz.

No total, os cientistas identificaram 21 alterações epigenéticas consideradas significativas nos sírios que tinham sido diretamente expostos aos conflitos armados. Outras 14 modificações foram vistas entre as pessoas que já nasceram na Jordânia, mas são filhas de mães que presenciaram a violência em larga escala.

As áreas do DNA com alterações têm alguma ligação com processos como o surgimento do câncer ou a regulação da apoptose (a morte programada das células, processo importante para o controle do crescimento, por exemplo). Ainda não é possível, porém, avaliar seus efeitos exatos nas atuais gerações de refugiados. Além disso, mudanças epigenéticas que fazem com que a idade biológica seja maior do que a cronológica também foram encontradas nos grupos dos que fugiram para a Jordânia.

Para os pesquisadores, embora seja necessário ampliar muito mais esse tipo de estudo para compreender melhor o fenômeno, as pistas trazidas pelo trabalho podem ajudar a entender outras populações que sofrem violência rotineiramente, como mulheres e minorias étnicas, e como esse processo pode ter efeitos que se arrastam por gerações. (Folhapress)

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