Familiares recebiam pagamentos para home care no RS mesmo após morte de pacientes, diz prefeitura


Esquema divulgado pelo Fantástico, da TV Globo, envolve adulteração de laudos, assinaturas e carimbos para justificar decisões judiciais que obrigam poder público a custear atendimento. Fraude do home care: empresas são investigadas por forjar documentos e desviar milhões
A Prefeitura de Santo Ângelo, no Noroeste do RS, descobriu que familiares recebiam pagamentos do município para serviços de home care, para atendimento médico domiciliar, mesmo após a morte dos pacientes. Uma comissão interna foi criada para buscar informações sobre o esquema revelado pelo Fantástico, da TV Globo.
“Hoje nós estamos com 59 casos ativos. Em alguns casos, as pessoas faleceram e, como o bloqueio judicial é feito de três em três meses, às vezes a pessoa falece e os familiares teriam que devolver o dinheiro”, diz o prefeito Nívio Braz.
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O esquema envolve a adulteração de laudos, assinaturas e carimbos para justificar decisões judiciais. O Grupo de Investigação da RBS (GDI) ouviu testemunhas, teve acesso a relatórios oficiais e fez gravações com câmera escondida que apontam a participação de familiares de pacientes, médicos e advogados na fraude.
O Conselho Regional de Medicina e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS) informaram que abriram investigações para apurar a eventual participação de profissionais no esquema.
Técnica de enfermagem teve nome usado
A técnica de enfermagem Thainá Schuller, moradora de Sapucaia do Sul, na Região Metropolitana de Porto Alegre, se viu no centro do esquema de falsificação de documentos médicos sem sequer ter trabalhado para a empresa envolvida.
O nome da mulher apareceu em laudos de atendimentos a uma paciente de Guaíba, cidade onde ela afirma que nunca esteve a serviço.
“Nunca fui a Guaíba. Eu tô apavorada, não consegui dormir essa noite, depois que eu descobri isso”, desabafou.
O esquema de falsificação de documentos médicos permitiu que uma das principais empresas do ramo recebesse pagamentos do estado e do município por serviços nunca prestados a partir de liminares, segundo apuração do Grupo de Investigação da RBS (GDI).
Técnica de enfermagem Thainá Schuller
Reprodução/ RBS TV
Esquema de falsificação de documentos
A denúncia partiu de uma ex-funcionária administrativa da Support Sul, que trabalhou na empresa por um ano. Segundo ela, funcionários eram pressionados a falsificar rubricas e relatórios em nome de médicos e enfermeiros que nunca atenderam os pacientes.
A defesa da Support Sul afirmou, em nota, que “desconhece as acusações” e que “não tem como prestar esclarecimentos neste momento”.
A delatora entregou à reportagem um pen drive com 40 gigabytes de documentos, incluindo reproduções de 50 carimbos e registros de atendimento de 15 pacientes que, na prática, não receberam o serviço.
“Exemplo de um terapeuta ocupacional, que é bem difícil de encontrar, o paciente não recebia esse atendimento, mas a empresa recebia o valor porque para o juiz era prestado esse laudo”, sustenta a ex-funcionária, que disse ter assinado laudos em nome de pelo menos dez profissionais de saúde, sob pena de ser demitida.
Investigação
Segundo a Procuradoria-Geral do Estado, em 2024, foram 227 decisões judiciais favoráveis aos pacientes.
“Identificamos o crescimento no número de bloqueios judicias nas contas do estado para pagamento — que saiu de 19 para 39 milhões, de 2023 pra 2024, e isso acendeu um alerta”, diz o procurador-geral do Estado, Eduardo Cunha da Costa.
O esquema inclui a simulação de concorrências para garantir que uma empresa específica seja contratada. Em Santo Ângelo, a empresa Renovar Home Care venceu ao menos 16 disputas judiciais.
O relatório informa que, em todos os processos, são sempre as mesmas empresas que fornecem os orçamentos, obrigatórios para que possa ser escolhido o de menor valor, no caso, o da Renovar.
Simulando interesse em contratar o serviço, a reportagem entrou em contato com a dona da Renovar, que, dias depois, entregou ao repórter três orçamentos. A conversa foi gravada por câmeras escondidas.
A dona da Renovar, Claudia Fonseca, que participou da conversa com a reportagem ao lado de um homem que apresentou como sócio, diz que as empresas se ajudam, e umas fornecem orçamentos forjados para as outras.
“Se por exemplo, alguém lá do juiz ligar para as outras empresas, elas vão confirmar?”, questionou a reportagem
“Claro, com certeza”, respondeu Claudia.
Claudia Fonseca e Luiz Itamar Maciel
Reprodução/ RBS TV
Além disso, a mulher revelou que existe uma espécie de roteiro para embasar os laudos médicos nos quais a justiça se baseia para conceder ou não as liminares.
Uma cópia do laudo foi enviada à reportagem. O modelo sugere explicar que o “serviço não pode ser prestado por familiar ou cuidador” e que é “contraindicada a internação hospitalar”.
O GDI examinou seis laudos de um médico que forneceu diagnósticos de pacientes em liminares em que a Renovar presta o serviço. Todos têm trechos idênticos.
“Tem muitos laudos médicos que são praticamente copiar e colar. Nós achamos estranho, muito estranho, porque é ruim você contestar o médico, né? Mas, agora, quando vem alguns indícios desses, aí sim, nós podemos montar um dossiê e dizer ‘isso aqui está estranho’. Submete-se a uma junta médica, a outros especialistas”, diz o prefeito de Santo Ângelo.
Luiz Itamar Maciel, homem apresentado como sócio da empresa, foi além. Ele admitiu existir uma triangulação com médicos e advogados, para garantir a fraude.
“E a gente trabalha com parceria com eles, junto com a equipe médica e a parte da advocacia, a gente montou uma forma de um laudo, pra que não viesse negado”, disse Maciel, sem saber que estava sendo gravado.
Logo após o flagrante com câmera escondida, o GDI se apresentou ao casal, que negou tudo.
Valor desviado para reforma em casa
A partir de serviços superfaturados com orçamentos combinados entre empresas e relatórios falsos de atendimento, parte dos valores repassados pelo governo retorna para os familiares.
Em uma das gravações obtidas com exclusividade pelo GDI, a dona de casa Lucimara Aparecida, mãe de uma menina de 11 anos com paralisia cerebral, diz para outra mãe que planeja construir até uma piscina.
“Pego e tô investindo. Próximo mês, do dinheiro dela, eu vou comprar os materiais para desmanchar a frente da casa ali. E já vou deixar a parte pronta pra piscina. O próximo passo é eu comprar o carro, guria. Zero quilômetro”, comenta.
Lucimara Aparecida
Reprodução/ RBS TV
A defesa de Lucimara afirma que ela está “à disposição da justiça para qualquer esclarecimento”. Leia abaixo na íntegra.
A dona de casa e outros onze endereços ligados a empresas e parentes de pacientes foram alvo de buscas em Passo Fundo e região, em dezembro. O processo tramita em segredo de Justiça.
“Há indícios de que os valores que eram destinados a um tratamento que de fato era necessário, que a integralidade desses valores não recebia a destinação adequada, que havia desvio de parte deles. E se investiga também se havia um superfaturamento com base em orçamentos apresentados pela parte interessada”, afirma o promotor de Justiça Diego Pessi, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público (Gaeco).
Nota da defesa de Lucimara
“A defesa de Lucimar Aparecida Nicolai, constituída pelos advogados Ana Paula Nonnenmacher e William Lima vem perante a imprensa , manifestar que a investigada está a disposição da justiça para qualquer esclarecimento, que vai colaborar com a instrução processual penal, bem como, que a verdade dos fatos será esclarecida em possível ação penal por vias do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.
Aínda destaca, que trata-se de falácia a informação que está teria abandonado sua filha, ou desaparecido, sua defesa segue a disposição para qualquer esclarecimento ou informação.”
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