1984 e o game que quase foi uma sequência

Games licenciados e baseados em obras de outras mídias não são uma novidade desde muito tempo. Desde os primórdios existem títulos para diversas plataformas que adaptam filmes, séries, livros, HQs, you name it. No entanto, é até surpreendente que 1984, o romance distópico seminal de George Orwell, jamais fora adaptado.

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O livro recebeu diversas versões de filmes, séries de TV e programas de rádio, mas nunca um game, o que torna a descoberta de Big Brother, um game cancelado que daria sequência na narrativa original, ainda mais fascinante.

Um dos cenários de Big Brother (Crédito: Reprodução/MediaX)

Um dos cenários de Big Brother (Crédito: Reprodução/MediaX)

1984 – Parte 2

A MediaX foi uma desenvolvedora absolutamente desconhecida, que só lançou uma experiência interativa (mal dá para chamar de game) baseada no álbum Promised Land, na banda Queensrÿche. O estúdio teria sido fundado por volta de 1996, e Big Brother deveria ter sido seu jogo de estreia.

A desenvolvedora adquiriu os direitos de 1984 e do nome Big Brother, para desenvolver um enredo original baseado no mesmo universo, efetivamente uma sequência do livro, com novos personagens e acontecimentos inéditos. Ele seria, segundo os responsáveis, uma combinação da jogabilidade em tempo real de Quake, com o nível de detalhes de Myst.

Big Brother foi oficialmente revelado em maio de 1998, no que a presidente da MediaX, Nancy Poertner, disse à revista GameWeek que ele estava “70% completo” e seria lançado em setembro de 1998 para PC, por US$ 30. Além disso. o estúdio cuidaria pessoalmente de tudo relacionado a marketing, desenvolvimento e distribuição para reduzir custos, o que soa impressionante para um estúdio pequeno e anônimo.

Meses depois, ele seria apresentado na E3, em que o lançamento foi estendido para até março do ano seguinte, e mesmo ainda na fase de desenvolvimento, a demonstração chegou a receber um Satellite Award em 1999, como “Melhor Produto Interativo/Entretenimento em CD-ROM”. Daí por diante, o projeto desandou.

O lançamento de Big Brother continuou sendo postergado, a última data oficial dizia que ele chegaria às lojas em novembro de 1999; relatórios financeiros revelaram que o estúdio havia gastado mais de US$ 240 mil na empreitada, e relatórios posteriores não mais o mencionaram. No fim daquele ano, o estúdio leiloaria seus bens, e o lançamento teria sido postergado para o início de 2000, segundo fontes.

Porém, nesse imbróglio a desenvolvedora perdeu em 1999 os direitos de uso das marcas junto à Newspeak, a controladora do espólio de George Orwell, que não foram renovados; esta tentou vender os direitos de publicação para outro estúdio, incluso uma build pré-alfa do game, mas ninguém se interessou; por fim, a MediaX fechou supostamente em 2000.

Ninguém mais ouviu falar de Big Brother até dias atrás, quando uma build do game foi hospedada no Internet Archive, para qualquer um baixar.

Big Brother (Crédito: Reprodução/MediaX) / 1984

Big Brother (Crédito: Reprodução/MediaX)

A versão do game, obviamente incompleta, data de 4 de janeiro de 1999, e não roda de maneira nativa em PCs; são necessárias algumas intervenções, explicadas no post original por um usuário chamado “Shed Troll”, com o propósito de preservar o título. A imagem inclui uma demo, recursos de fases completos, e a lógica de programação, ou seja, fuçadores poderão acessar e alterá-lo como acharem melhor.

Ninguém sabe como essa cópia veio parar nas mãos do uploader, nem sua identidade; é sabido que antigos profissionais da MediaX são avessos até hoje a falar sobre o projeto, e se recusam a retornar contatos da imprensa. Pode ser que o uploader seja um ex-funcionário, ou alguém que aleatoriamente tenha esbarrado na build e decidiu subi-la para o Internet Archive.

O plot do game daria sequência nos eventos narrados em 1984. O jogador assumiria o papel de Eric Blair (uma referência ao nome verdadeiro de George Orwell, Eric Arthur Blair), um cidadão de uma Oceania “ainda mais decrépita” do que a ilustrada no livro. Sua missão seria resgatar sua companheira, feita prisioneira pela Polícia do Pensamento, por 12 fases divididas cada uma em cinco “horas”, dando um total de 60 estágios.

O jogador deveria interagir com diversos NPCs, incluindo uma célula de resistência hacker, empenhada em derrubar o regime do Grande Irmão, além de enfrentar inimigos e resolver puzzles para prosseguir em sua jornada; os gráficos e sons estão dentro do esperado em um título 3D em primeira pessoa da época, algo entre Quake e Half-Life, mas menos polido.

O mais impressionante dessa história, é perceber que 1984, publicado originalmente em 1949, nunca tenha gerado um game, embora seja reconhecido como um dos trabalhos mais influentes do gênero, ao lado de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, publicado em 1932 e que também nunca foi adaptado digitalmente. Por sua vez, Fahrenheit 451 (1953) e I Have No Mouth, and I Must Scream (conto publicado em 1967), lançados respectivamente em 1984 e 1995, foram desenvolvidos com envolvimento direto de seus autores, Ray Bradbury e Harlan Ellison.

Ambas obras de Orwell e Huxley, além de Laranja Mecânica, de Anthony Burgess (outro que nunca virou um game), descrevem estados autoritários que controlam todos os meios de comunicação e a vida de todos os cidadãos, embora divirjam em seus métodos. Em comum, todos esses beberam da fonte do russo Yevgeny Zamyatin, autor de Nós (1924), o livro que é considerado a distopia original, que já trazia diversos elementos explorados por outros autores, em diversas mídias.

No mais, a redescoberta de Big Brother é mais um lembrete da importância da preservação dos games, como uma ferramenta indispensável em prol da manutenção da memória da mídia, por mais que certos estúdios sejam contra.

Fonte: Lost Media Wiki

1984 e o game que quase foi uma sequência

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