‘Ainda Estou Aqui’: processo que apura circunstâncias da morte de Rubens Paiva está nas mãos do STF; entenda


Filme retrata a vida da família do ex-deputado, sequestrado e morto durante a ditadura militar. Ministério Público apresentou denúncia contra militares. O filme “Ainda estou aqui”, que concorre ao Oscar em três categorias neste domingo domingo (2), narra a trajetória de Eunice Paiva, que dedicou 40 anos de sua vida à busca pela verdade sobre o desaparecimento de seu marido, o ex-deputado federal Rubens Paiva. O ex-parlamentar foi assassinado em janeiro de 1971, durante a ditadura militar no Brasil.
Na Justiça, o destino do processo que apura as circunstâncias da morte de Paiva está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF), a quem caberá decidir se a ação contra os acusados de participação no crime deve ou não prosseguir (leia mais abaixo).
“Ainda Estou Aqui” e Fernanda Torres percorrem longo caminho de divulgação antes da maior premiação do cinema
No dia 21 de fevereiro, a Corte decidiu, por unanimidade, que vai analisar a questão, além de outros dois processos envolvendo vítimas da ditadura.
Ação penal apura morte de Paiva
A ação penal, que chegou como recurso ao STF, começou na Justiça Federal do Rio de Janeiro, com uma denúncia do Ministério Público Federal contra militares por suspeita de participação no caso.
O grupo foi acusado dos crimes de homicídio qualificado, ocultação de cadáver, fraude processual e quadrilha armada.
O processo penal foi aberto, e a defesa dos militares recorreu às instâncias superiores para encerrar o caso, sob o argumento de que deveria ser aplicada a Lei da Anistia. Considerada constitucional pelo Supremo, a legislação de 1979 concedeu perdão a crimes políticos e delitos relacionados ocorridos durante a ditadura.
Filme que retrata caso do deputado Rubens Paiva ajudou a reabrir debate no STF
Arquivo da família/BBC
Uma decisão do Superior Tribunal de Justiça suspendeu o andamento do processo. O recurso que chegou ao Supremo é contra esta determinação.
“No caso em tela, pretende-se sejam discutidos o direito fundamental de acesso à justiça e o direito à verdade, inerentes à vivência democrática, mas também típicos e necessários quando há a transição de um regime autoritário para a democracia, como é o caso brasileiro”, disseram os procuradores.
O Ministério Público Federal sustentou que os delitos em discussão na ação penal são crimes contra humanidade, já que cometidos por agentes estatais durante a ditadura militar. Por isso, são imprescritíveis.
“No caso concreto, os violentos delitos praticados pelos agentes do Estado em face do ex-deputado Rubens Beyrodt Paiva, um opositor político do regime autoritário, subsumem-se a essa categoria de delitos de lesa-humanidade, pois a específica circunstância dos crimes imputados terem sido cometidos pela força repressora do Estado ditatorial, de forma sistemática, contra a população civil insurgente ao regime opressor, com graves violações aos direitos humanos, confere-lhes magnitude que transcende o mero interesse social/nacional de reprimi-los, ofendendo a própria humanidade”, afirma o MPF no recurso.
Além disso, afirmou que o Brasil se comprometeu a seguir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre os desaparecidos na Guerrilha do Araguaia. Na sentença sobre este caso, a Corte Interamericana fixou que é dever do país investigar e responsabilizar criminalmente autores de desaparecimentos e graves violações dos direitos humanos. Para o MPF, esta determinação também é aplicável ao caso de Paiva.
O que o Supremo vai julgar
A partir do caso de Paiva e das outras duas vítimas, o Supremo vai decidir sobre a incidência da Lei de Anistia sob os seguintes aspectos:
– se a anistia pode ocorrer nos casos de crimes permanentes, ou seja, que ainda estão em execução. Neste tipo de delito, a ação se prolonga no tempo e vai além do período coberto pela legislação de 1979;
– se a Lei da Anistia é compatível com tratados internacionais aos quais o Brasil se comprometeu a cumprir, como o Pacto de São José da Costa Rica, que trata de direitos humanos.
Crimes permanentes
No caso de Paiva, um dos delitos em apuração é classificado como um crime permanente: a ocultação de cadáver (o corpo do ex-deputado nunca foi localizado).
Condenações internacionais
O Brasil tem sido alvo de condenações internacionais pela falta de punição a crimes comuns cometidos na ditadura.
O país já foi responsabilizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, em casos envolvendo a Guerrilha do Araguaia e a morte de Vladimir Herzog.
Quando validou a Lei de Anistia, o Supremo analisou o tema diante das regras brasileiras. Agora, a questão envolve avaliar se esta lei é compatível com o acordo internacional ao qual o Brasil aderiu.
Assim, o debate envolve saber se o compromisso do país com o tratado internacional deve prevalecer (garantindo punição às violações de direitos humanos) diante da anistia concedida a crimes do período militar (perdão a delitos envolvendo o regime político).
Decisão do STF
Se o STF entender que a Lei da Anistia incide sobre o caso de Paiva, o processo nas instâncias inferiores deverá ser encerrado, já que não haverá como punir os apontados como responsáveis.
Se a Corte considerar que o compromisso brasileiro com os tratados internacionais obriga o país a punir os crimes do período da ditadura, é possível que a ação penal contra os militares acusados do assassinato prossiga nas instâncias inferiores.
Repercussão geral
A análise dos processos no Supremo será feita pelo sistema de repercussão geral. Por este mecanismo, os magistrados decidem uma questão e elaboram uma tese a ser usada em todos os processos com o mesmo assunto nas instâncias inferiores, uniformizando o entendimento da Justiça. A definição da tese será em outro julgamento, que ainda não foi marcado.
Voto do relator
O relator do caso é o ministro Alexandre de Moraes. Ao defender a aplicação do sistema de repercussão geral, Moraes afirmou que o tema tem “grande relevância para a pauta dos direitos humanos”.
“Os presentes casos tangenciam matéria de grande relevância para a pauta dos direitos humanos, permitindo que agora o STF avalie a questão a partir da perspectiva de casos concretos, com diferentes nuances. Portanto, na presente hipótese é patente a repercussão geral”, argumentou.
O relator ressaltou que, além das duas condenações internacionais aplicadas ao Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos analisa um terceiro caso relativo à ditadura, que pode voltar a responsabilizar o país por se omitir diante de violações de direitos humanos.
“Em outros países, também se verificou o debate sobre a legitimidade de norma que concedeu anistia, de modo a beneficiar não apenas os punidos pela ordem ditatorial, mas também os agentes públicos que cometeram crimes comuns, a pretexto de combater os dissidentes”, declarou.
Adicionar aos favoritos o Link permanente.