Estudo acompanhou caso em que fêmea foi receptiva ao macho, mas nem sempre isso acontece. Na natureza, um acasalamento bem-sucedido muitas vezes depende do cortejo realizado pelos machos. Um artigo científico publicado na revista Ocean and Coastal Research traz novidades sobre o comportamento reprodutivo da raia-chita (Aetobatus narinari), também conhecida como raia-pintada, na costa do Brasil.
Pela primeira vez, pesquisadores documentaram o cortejo e o acasalamento da espécie em águas brasileiras. Os registros foram feitos na Zona de Exclusão de Pesca do entorno do Parque Estadual da Ilha Anchieta, uma área protegida na costa norte de São Paulo, e abrem caminho para novas investigações sobre a biologia e a preservação desses animais.
Em um dos casos documentados, um macho identificou uma fêmea que estava apta à reprodução e iniciou o comportamento de cortejo, perseguindo e interceptando-a.
Raia-chita possui dorso azul-escuro com manchas brancas
Thamíris Christina Karlovic de Abreu
“Ela diminuiu a velocidade para que ele conseguisse estar próximo, então ele começou a mordiscar o dorso dela, que é um comportamento de corte já descrito. Após esse momento de interceptação, ele começa a tentar segurá-la mordendo uma das nadadeiras peitorais da fêmea e, quando consegue segurá-la, eles se posicionam ventre com ventre”, descreve a bióloga Thamíris Christina Karlovic de Abreu, pós-doutoranda do Instituto Oceanográfico (IO) da USP.
Quando os animais estão praticamente acoplados, o processo de reprodução sexuada acontece. Durante o acasalamento, macho e fêmea desempenham comportamento curioso, acontece, em que o par rotaciona enquanto estão “acoplados”, descendo até a superfície arenosa do assoalho marinho.
“Esse comportamento também já foi descrito para animais da mesma espécie, mas em aquários. E foi muito bonito a gente conseguir esse registro. Eles finalizam o acasalamento com um dos dois deitados sobre o fundo do mar, e depois que termina eles se separam e seguem para direções diferentes”, explica Thamíris.
Quando o ‘xaveco’ não funciona
O grupo de pesquisadores também acompanhou um caso de cortejo que não deu certo. Nesta situação, outra fêmea estava sendo perseguida por três machos diferentes. Mesmo sendo adulta e apta à reprodução, ela fugia dos três e não permitia o acasalamento.
“Aí é quando a gente começa a ver o comportamento de corte se tornar um pouco mais agressivo por parte dos machos, porque eles ficam perseguindo as fêmeas por um bom tempo, tentando segurá-la ao morder uma das nadadeiras”.
Estudo de caso no qual uma fêmea foi perseguida por três machos
Thamíris Christina Karlovic de Abreu
“Até mesmo podem mostrar comportamentos de salto para fora da água, tentando encurralá-la para regiões mais rasas”, relata a pesquisadora que liderou o estudo ao lado do oceanógrafo Lucas Citele Candido e da professora June Ferraz Dias, coordenadora do Laboratório de Ecologia da Reprodução e do Recrutamento de Organismos Marinhos do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo.
Por ser maior em tamanho que os machos, a fêmea conseguiu escapar das investidas. Segundo Thamíris, esse tipo de abordagem por mais de um macho, no qual a fêmea os rejeita, já consta na literatura científica.
“Eles podem demonstrar diferentes comportamento, mas a rejeição aos machos é peculiar às fêmeas: permitir ou não a aproximação de machos em específico”, acrescenta.
A espécie
Conhecida por seu dorso azul-escuro com manchas brancas, a raia-chita habita as águas do Oceano Atlântico, sendo encontrada desde a Carolina do Norte, nos Estados Unidos, até o Sul do Brasil. Há alguns registros do animal para a costa da África também.
Vivendo até 15 anos em vida livre, estes peixes cartilaginosos se alimentam principalmente de crustáceos, moluscos e outros pequenos animais marinhos. Habitam o fundo de estuários e baías e, na hora de se alimentar, ficam semienterradas na areia, percebendo a presença de presas passar para atacá-las e ingeri-las.
Em vida livre, raia-chita pode viver até os 15 anos de idade
Curtis Hart / iNaturalist
No quesito reprodução, é comum que raias e tubarões não ovíparos tenham gestações longas. No caso dessa espécie, cada fêmea pode gerar até 5 embriões em uma gestação de 12 meses, mas isso não é comum. “É mais comum o desenvolvimento de um a dois porque seu desenvolvimento interno demanda muito, energeticamente falando, do corpo da fêmea”.
A raia-chita não costuma cuidar dos filhotes já nascidos, mas a forma de cuidado parental da espécie ocorre quando a fêmea busca locais capazes de aumentar o sucesso reprodutivo dos recém-nascidos, ou seja, longe de predadores e com boa disponibilidade de alimento.
‘Mergulhando na conservação’
Registradas por voluntários do projeto “Mergulhando na Conservação”, as imagens do acasalamento das raias foram feitos próximo ao Parque Estadual da Ilha Anchieta, local que possui uma zona de exclusão que proíbe a pesca em seus arredores.
Segundo a professora June Ferraz, essa proteção é essencial para a manutenção do ecossistema. “Proteger uma área onde ocorre a reprodução dessa espécie vulnerável significa garantir um futuro saudável para toda a comunidade marinha da área e não somente para essa espécie”, afirma.
A exclusão de atividades humanas, como a pesca de arrasto e outras, ajuda a reduzir a degradação do ambiente, barulho e poluição – fatores que poderiam impactar a biodiversidade local. A raia-chita é considerada Em Perigo (EN) de extinção pela IUCN.
Por ter um período de gestação longo, gerar um número de filhotes reduzido, crescer e ficar apta à reprodução tardiamente, a reposição de novos indivíduos nas populações de vida livre ocorre mais devagar. Sendo assim, os locais onde não há áreas protegidas, a taxa de mortalidade das raias-chita aumenta sensivelmente devido à ação humana.
Projeto realiza ações de educação ambiental na área
Thamíris Christina Karlovic de Abreu
“A gente acaba contribuindo muito para que as populações das raias comecem a enfrentar taxas maiores de mortalidade e não tenham tempo suficiente, pela gestação ser muito longa, para repor esses indivíduos que estão saindo pela mortalidade”, analisa.
A raia-chita é considerada Quase Ameaçada (NT) no estado de São Paulo. Já a nível nacional, é considerada com Dados Deficientes (DD), categoria que acaba limitando a abrangência de políticas públicas voltadas à conservação específica da espécie.
No parque, o projeto Mergulhando na Conservação, liderado por Thamíris e Lucas, usa a ciência cidadã para engajar turistas e voluntários na proteção da raia-chita. Para isso, são feitos mergulhos livres guiados nos quais os participantes ajudam a coletar dados sobre as espécies que avistam, muitos dos quais são inclusos em trabalhos de pesquisa. Isso caracteriza a ciência cidadã.
A partir de agora, a expectativa dos pesquisadores é que os registros e a relevância do entorno da Ilha Anchieta para o comportamento reprodutivo das raias-chita possam fortalecer a demanda pela criação de uma Unidade de Conservação que integre a área terrestre e a marinha por suas características naturais relevantes.
VÍDEOS: Destaques Terra da Gente
Veja mais conteúdos sobre a natureza no Terra da Gente