Medidas adotadas pelo presidente Javier Milei, principalmente a desvalorização da taxa de câmbio oficial do país, tornaram o país mais caro em dólares, ao mesmo tempo em que o dólar disparou no Brasil. Durante o ano de 2023, vídeos de turistas brasileiros se tornaram populares, mostrando como era possível consumir muito gastando pouco na Argentina. Cortes nobres de carne, vinhos de alta gama e doces típicos tinham preços baixíssimos.
Era uma festa, em que era possível comer muito bem com preços muito melhores do que no Brasil. Uma refeição clássica portenha — com entrada, prato principal e sobremesa — chegava a custar menos que R$ 100.
Um ano depois, a farra acabou. Os ajustes econômicos promovidos pelo presidente Javier Milei tornaram a Argentina mais cara em dólares. E o dólar também ficou mais caro no Brasil.
Quem se atreve a pedir agora o mesmo menu de 2023 não pagará menos que o dobro.
O g1 foi a Buenos Aires para entender como a dinâmica de preços mudou tanto de um ano para outro, e por que viajar para a Argentina deixou de ser um oásis de ostentação para os brasileiros.
REPORTAGEM ESPECIAL: O g1 mostra o que mudou na vida e na economia da Argentina, um ano após o Plano Motosserra
Argentina de Milei: o que mudou um ano após o Plano Motosserra
Por que a Argentina está tão cara?
No aniversário de um ano de gestão de Javier Milei, o g1 foi à capital da Argentina para entender como as mudanças na economia mudaram a vida de analistas, trabalhadores, empreendedores, empresários e estudantes que vivem no país.
Logo nos primeiros dias, o presidente colocou em prática sua principal proposta de campanha, o “Plano Motosserra”, com cortes de todos os tipos: de gastos, de normas burocráticas e de tudo que Milei via como intervenção excessiva do estado no dia a dia.
A ideia com tudo isso era reduzir os gastos do governo, liberalizar a economia, aumentar a entrada de dólares no país e fortalecer a confiança no futuro da Argentina. Na reportagem publicada em dezembro, é possível entender toda a trajetória da economia argentina em 2024.
Por mais dolorosas que sejam as medidas, parte dos argentinos parece considerar que esse é um caminho necessário, enquanto outros têm menos esperanças. O consenso é que o custo de vida aumentou.
Se os preços afetam o dia a dia do argentino, não poderia ser diferente para os viajantes. A reportagem encontrou os seguintes valores:
🍰 ☕ Uma fatia de torta doce e um café gelado: 13.400 pesos, cerca de R$ 80;
🥗 🍹Uma salada caesar, uma limonada e uma fruta com sorvete: 13.800 pesos, cerca de R$ 82;
🍔🍟 Um combo de x-bacon, com batata e refrigerante: 15.900 pesos, cerca de R$ 93;
🥩🍨 Um corte de carne com batatas, refrigerante, sorvete e café: 21.000 pesos, cerca de R$ 125;
🚗 🛣️ Uma corrida de 15 minutos (5km) com carro de aplicativo: 6.293 pesos, cerca de R$ 37.
Antes de entender por que os preços subiram, é preciso saber o porquê estavam tão baixos. Desde o século passado, os argentinos enfrentam períodos de alto endividamento, perda de confiança entre investidores e forte pressão inflacionária.
Entre 1991 e 2001, a Argentina adotou uma política de paridade de moedas, em que um peso equivalia a um dólar americano, uma tentativa de reduzir a inflação da época. No entanto, a paridade fez os custos de produção no país aumentarem, reduzindo a competitividade e incentivando investimentos em outras regiões.
O governo argentino também não podia adotar uma política de juros independente dos EUA, o que causava desequilíbrios na economia. O país acumulou endividamentos em moeda estrangeira e déficits nas contas públicas.
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Investidores fugiram e uma crise econômica se instalou. Em 2001, a paridade das moedas chegou ao fim e o peso rapidamente perdeu valor. Dali em diante, os governos apostaram na emissão de moeda para arcar com as dívidas, aumentando a quantidade de dinheiro em circulação e gerando mais a inflação.
A própria população perdeu a confiança no peso e passou a usar o dólar para suas economias. A moeda americana virou alternativa segura para poupança, para referência em contratos importantes e para grandes operações, como a compra e venda de imóveis.
O dólar, então, se tornou escasso na Argentina, pois as reservas internacionais não são suficientes para cobrir a dívida pública nem para atender à demanda da população. Isso levou a um controle do câmbio oficial do país e medidas de limitação do uso e compra de dólares.
Mesmo com o “cerco cambial”, a busca intensa por dólares criou um mercado paralelo, em que a cotação se ajustava pela oferta e demanda. Houve um descolamento entre a cotação oficial e as cotações paralelas, o que dava evidência ao chamado “dólar blue”, que acabava representando a verdadeira desvalorização da moeda nacional.
Quanto maior a incerteza, maior a expectativa de desvalorização do peso e maior a demanda pelo dólar. No final de 2023, o dólar blue havia ultrapassado a cotação de 1 mil pesos, enquanto o dólar oficial ainda era cotado a menos de 400 pesos.
Essa grande diferença entre as cotações do peso e a constante desvalorização da moeda argentina beneficiavam os turistas brasileiros, que podiam comprar mais pesos pela cotação extraoficial. Além disso, os preços na Argentina eram definidos pelo dólar oficial, e mais atrativos.
Em 2023, o real também estava mais forte e comprava mais dólares, permitindo aos brasileiros uma taxa vantajosa no mercado paralelo na Argentina. Na hora de consumir, o dinheiro rendia muito mais.
Quando Milei assumiu, uma de suas primeiras medidas foi acabar com o congelamento da taxa de câmbio oficial e desvalorizar o peso. O câmbio oficial passou para 800 pesos por dólar, com uma política de desvalorização controlada de 2% ao mês — menor que a inflação mensal do país.
Um ano depois, as cotações do dólar oficial e do dólar blue se aproximaram bastante. O dólar oficial está cotado a 1.060 pesos, enquanto o dólar blue está em cerca de 1.200 pesos, mantendo-se praticamente estável em relação ao fim de 2023.
Outro ponto é que, ainda no início de mandato, Milei removeu subsídios de serviços básicos, como transporte público e energia elétrica, e permitiu o descongelamento de preços em supermercados. São medidas que inicialmente fizeram a inflação disparar, atingindo 25,5% em dezembro de 2023.
De lá para cá, a subida de preços desacelerou bastante, passando para 2,7% em dezembro de 2024. Embora a inflação tenha saído de uma taxa anual de 211,4% em 2023 para 117,8% em 2024, o aumento de preços de bens e serviços foi bastante agressivo. Ao mesmo tempo, o dólar blue se estabilizou.
“Se os preços sobem muito, mas o peso fica estável em relação ao dólar, a Argentina fica mais cara em dólares”, explica Bernal.
Na prática, a vantagem de quem tem dólares diminuiu. Antes, a cotação do dólar paralelo acompanhava mais de perto a inflação. Assim, quem tinha dólares sempre conseguia mais pesos com a constante mudança na taxa de câmbio.
Ao consumir produtos e serviços na Argentina, mesmo com os preços subindo em pesos, a variação não era tão sentida porque o dólar também se valorizava em relação ao peso.
Agora, os preços continuam subindo, mas sem que a taxa de câmbio acompanhe essa alta de perto — o que dá a impressão, para quem vive ou chega ao país com dólares, de que a Argentina ficou mais cara.
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Agora, considere tudo o que aconteceu na Argentina junto com a forte desvalorização do real em 2024. O dólar subiu 27,35% em relação à moeda brasileira, ultrapassando a barreira dos R$ 6 pela primeira vez na história.
Assim, a mesma quantia em reais vale muito menos nas trocas internacionais, justamente quando a Argentina ficou mais cara. Isso marcou o fim da vida de luxo que os brasileiros viviam no país vizinho antes da chegada de Milei.
Para Bernal, a política de desvalorização controlada do peso em relação ao dólar oficial “não é sustentável no longo prazo e, em algum momento, o governo vai precisar permitir que o dólar se desvalorize mais, para que a Argentina deixe de estar tão cara em dólares”.
O cerco cambial, por enquanto, também continua. William Castro Alves, estrategista-chefe da Avenue, explica que, se o governo libera o controle da moeda, “eventualmente haveria um aumento da demanda pelo dólar, consequentemente desvalorização do peso argentino e prejudicaria toda a política do Milei”.