Gradatim Ferociter (aos poucos, ferozmente) é o lema da Blue Origin, empresa de foguetes mais antiga que a SpaceX, que até hoje nunca tinha colocado nada em órbita, mas finalmente isso mudou. New Glenn, seu primeiro foguete orbital, foi lançado com sucesso, tornando 15 de fevereiro de 2025 uma data histórica para a empresa.
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Fundada em setembro do ano 2000, a Blue Origin nunca teve muita atenção de Jeff Bezos, que apenas despejava dinheiro e deixava o povo seguir seu próprio ritmo. Muitos, muitos projetos foram iniciados e abandonados, e o New Sheppard, o foguete-miniatura usado para turismo espacial só foi lançado com sucesso em 2015.
Alguns projetos eram levados mais a sério, como o BE-4, o -reconhecidamente- excelente motor a metano, que equipa o Vulcan da United Launch Aliance e também o New Glenn.
Por que a Blue Origin escolheu Metano?
A história dos propelentes de foguetes é longa, complicada e fascinante. Óbvio que não dá nem pra arranhar neste artigo, mas se você quiser entender como chegamos aqui, recomendo o excelente livro Ignition! Na Informal History of Liquid Rocket Propellants, de John D. Clark, considerado a Bíblia do tema. O livro é excelente, como prova de qualidade, o prefácio é de Isaac Asimov, e está disponível gratuitamente, em versão PDF, só clicar aqui (Cuidado, PDF)
Basicamente, foguetes em sua maioria hoje em dia usam RP1 como combustível, e oxigênio líquido como oxidante. RP1 é um tipo de querosene altamente refinado, com menos impurezas. Os chineses gostam de usar combustíveis hipergólicos nos motores auxiliares de seus foguetes, o Longa Marcha 3B, por exemplo, usa Dimetil-Hidrazina Assimétrica como combustível e tetróxido de nitrogênio (N2O4) como oxidante. São substâncias corrosivas, perigosas, cancerígenas e que se uma gota cair na sua mão, há boas chances de você ter filhos esquisitos.
Essas substâncias também criam uma linda fumaça laranja quando os motores são descartados e jogados em cima de vilas chinesas.
Embora não seja recomendado beber querosene em grandes quantidades (ou menos em pequenas), o manuseio de RP1 é bem mais tranqüilo, o que compensa a perda de performance em relação ao combustível mais eficiente: Hidrogênio líquido, uma desgraça que torna metais cristalinos e frágeis, vaza por todo canto e sua chama é invisível, pode estar pegando foto do seu lado e você só percebe tarde demais.
A desvantagem do RP1 é que como todo hidrocarboneto, ele é composto de moléculas complexas, que geram resíduos dos mais variados, todos ruins. Por isso o Falcon9 vive coberto de fuligem. Isso e o pão-duro do Musk não montar um lava-jato de foguetes.
Os resíduos também prejudicam as partes internas do motor Merlin, como o gerador de gás, que queima combustível para produzir gás em alta pressão e girar as super-bombas que puxarão o combustível e oxidante dos tanques na velocidade absurda com que são consumidos na câmara de combustão.
Isso não é problema em foguetes normais, que são usados e descartados, mas o Falcon 9 é reutilizável, no momento há foguetes que voaram 25 vezes, e os motores precisam passar por inspeções e eventuais retíficas periódicas.
No caso do BE-4 e do Raptor, motor a metano da SpaceX, isso é bem simplificado, pois metano é uma molécula bem mais simples, CH4, cuja combustão é igualmente simples. Aqui a equação balanceada:
CH4 + 2 O2 -> CO2 + 2 H2O
Uma molécula de metano se combina com duas de oxigênio, liberando energia e produzindo uma molécula de dióxido de carbono, e duas de água.
Um dos efeitos do metano é sua chama azul e limpa, muito bonita nos lançamentos.
Bonito também (admito) é o New Glenn, que foi projetado desde o início para ser reutilizado; possui pernas embutidas no primeiro estágio e uma característica que o diferencia do Falcon Heavy: A capacidade de carga é bem próxima, mas o New Glenn é bem mais grosso, e isso é bom. (inserir duplo-sentido aqui)
O Falcon 9 / Heavy usa um primeiro estágio com 3,7 metros de diâmetro. Sua carenagem tem 5,2 metros com um diâmetro útil de 4,6 metros.
O New Glenn tem sete metros. Isso significa que o volume para a carga é bem maior, permitindo satélites não necessariamente mais pesados, mas maiores, o que torna tudo mais fácil e barato.
Por enquanto o segundo estágio do New Glenn será descartado, mas a Blue Origin tem planos (ao menos patentes) para reutilizar o segundo estágio, tornando o foguete 100% reutilizável, como a Starship (eventualmente).
O lançamento
Havia pouca chance do lançamento dar errado; a filosofia da Blue Origin é bem tradicional. Tudo é planejado, especificado, testado, simulado até não poder mais. É bem mais caro, demora muito mais tempo, mas se você não tem prazo fixo, funciona.
O New Glenn decolou, depois de um adiamento (também natural em foguetes estreantes) e todo mundo reparou que ele subiu muito, muito devagar. Alguém calculou que sua relação empuxo/peso estava na casa de 1.15:1. Eles não aceleraram os motores nem perto do máximo. Para usar uma linguagem mais técnica, ele subiu só no sapatinho, segurando na embreagem e mantendo RPM lá embaixo.
No vídeo abaixo o lançamento começa na marca 1h54min aproximadamente.
Aí, começou a palhaçada
A Blue Origin usou uma interface de telemetria extremamente confusa, e com unidades imperiais. Você ouvia o controle da missão falando em metros, e na tela, tudo em pés, jardas, o escambau.
Nesse ponto, a transmissão basicamente acabou. As poucas imagens do foguete eram falhadas, cheias de artefatos e não se sustentavam por mais de alguns segundos antes do sinal cair. Definitivamente a SpaceX nos acostumou mal, colocando câmeras em todos os cantos. A Starship tem 30 câmeras e quatro antenas Starlink, com 164Mbits de telemetria e streaming enviados continuamente.
Depois da separação do primeiro estágio, o segundo seguiu, movido por dois motores BE-3U, adaptados dos usados no New Sheppard, o foguete de turismo com formato questionável. Esses consomem Hidrolox, nome chique para hidrogênio e oxigênio, e foi a primeira vez que um BE-3 foi realmente ao espaço.
A única “prova” foi uma imagem que Jeff Bezos postou dois dias depois, houve uma ou duas tentativas de firmar um sinal de vídeo, mas o Universo não colaborou. Mesmo assim o segundo estágio entrou em órbita corretamente, e a missão foi um sucesso. Órbita na primeira tentativa, admirável, palmas para todos os envolvidos.
Já o primeiro estágio realizou a manobra inicial para direcionar o pouso na balsa Jacklyn, mas o sinal foi perdido, e depois de algum tempo a Blue Origin acabou admitindo que o primeiro estágio foi pro espaço.
A comunicação da Blue Origin foi praticamente inexistente, apesar das duas cheerleaders se congratulando o tempo todo. A ausência de vídeo parecia transmissão da Arianespace, que parece estar fazendo um favor, e a Grande Muralha controlando a informação parecia transmissão espacial da China, que às vezes lançam foguetes sem avisar, anunciam que não irão transmitir nada, ou no caso do robozinho lunar, disseram que nada seria transmitido, mudaram de idéia no meio do pouso e na semana seguinte tinha até site em inglês.
O Problema da Blue Origin
No final, eu fico com a pureza das transmissões da Índia, seu entusiasmo travestido de seriedade, o orgulho intrínseco de explorar e expandir fronteiras, mesmo sendo um país pobre.
Todos os parabéns à Blue Origin, digo que as chances de acertarem o pouso no próximo lançamento são imensas, e o New Glenn é uma bem-vinda competição que evitará que a SpaceX se acomode, mas que descarreguem um pouco da arrogância; tudo fica mais leve sem ela, até seus foguetes.
Foguete Gigante da Blue Origin foi pro espaço, nos dois sentidos